Há um som que as notícias não conseguem captar. Não é o estrondo das explosões nem o grito das sirenes. É o silêncio que se segue: o silêncio de uma casa onde antes havia risos, o silêncio de um berço vazio, o silêncio de um futuro que foi roubado antes de poder começar. O que se passa hoje em Gaza, e por toda a Palestina, transcende a linguagem da geopolítica e do direito internacional. É uma descida a um abismo moral que nos arrasta a todos, quer o admitamos, quer não.
As contagens diárias de vítimas, por mais terríveis que sejam, correm o risco de se tornar uma abstração, um ruído de fundo na nossa consciência saturada. Milhares de mortos, dezenas de milhares de feridos, milhões de deslocados. Os números anestesiam, mas por trás de cada unidade está um universo. Uma criança que nunca mais vai aprender a ler, um padeiro cuja receita se perdeu nos escombros, um poeta cujos versos foram silenciados para sempre. Reduzir esta catástrofe a um “conflito” entre duas partes equivalentes não é apenas um erro de análise; é uma falha moral. O que testemunhamos é a aplicação metódica e sistemática de uma força desproporcional sobre uma população encurralada, privada de fuga, de sustento e de esperança.
Para compreender a profundidade desta crise, é preciso olhar para além do ciclo de violência imediato. É preciso questionar as próprias lentes através das quais vemos este “problema”. O falecido intelectual Edward Said dedicou a sua vida a desvendar como as narrativas de poder constroem o “outro”. O palestiniano, no discurso que há décadas justifica a sua subjugação, raramente é visto na sua plena humanidade. É apresentado como um problema demográfico, uma ameaça à segurança, um obstáculo à paz. Esta desumanização não é um subproduto acidental do conflito; é a sua principal condição de possibilidade. É o que permite que a destruição de hospitais seja justificada como o desmantelamento de “centros de comando” e que a fome de civis seja uma consequência lamentável, mas aceitável, da guerra.
Quando as estruturas que sustentam a vida são deliberadamente visadas – as universidades, os arquivos culturais, os olivais centenários, as redes de água potável – o objetivo transcende a vitória militar. O que está em curso é o que o pensador Achille Mbembe apelidou de “necropolítica”, uma política que não se limita a governar a vida, mas que administra ativamente a morte. É a criação de “zonas de morte” onde populações inteiras são consideradas supérfluas e onde a sua eliminação se torna um objetivo político calculista.
Neste contexto, a própria lei revela a sua fragilidade e, por vezes, a sua perversidade. Vivemos num mundo que se orgulha das suas convenções, dos seus tribunais internacionais e das suas declarações de direitos humanos. No entanto, na Palestina, este edifício legal parece colapsar, transformando-se naquilo que o filósofo italiano Giorgio Agamben descreveu como um “estado de exceção” permanente. É um espaço cinzento onde as regras são suspensas para um determinado grupo. As resoluções da ONU são ignoradas, as ordens dos mais altos tribunais do mundo são desafiadas com impunidade e a vida humana é despojada do seu estatuto sagrado. A vida palestiniana torna-se “vida nua”, uma existência que pode ser terminada sem que isso constitua um crime ou uma transgressão política para quem a termina.
A tragédia não reside apenas na violência explícita, mas também na indiferença calculada da ordem mundial. A mesma ordem que invoca sanções, intervenções e a “responsabilidade de proteger” noutros contextos, aqui hesita, prevarica e fala numa linguagem de “preocupação” oca enquanto os cemitérios se enchem. Esta duplicidade de critérios não passa despercebida. Envia uma mensagem clara ao resto do mundo: a universalidade dos direitos é, afinal, bastante seletiva.
O que se pede ao mundo não é que “tome um partido” como se de uma competição desportiva se tratasse. O que se pede é o reconhecimento de uma humanidade partilhada e a aplicação de um único padrão de justiça. É a recusa em aceitar que a segurança de um povo possa ser construída sobre a aniquilação de outro. É a compreensão de que a paz duradoura nunca poderá florescer num solo de injustiça, ocupação e desespero.
Gaza hoje é um espelho partido. Em cada um dos seus estilhaços, reflete não apenas o sofrimento de um povo, mas a falência do nosso sistema global, a hipocrisia das nossas proclamações e o limite da nossa empatia. Desviar o olhar não nos isenta da imagem que ele nos devolve. Pelo contrário, a nossa recusa em encarar esta verdade, em chamar as coisas pelos seus nomes – ocupação, limpeza étnica, apartheid –, é o que permite que o espelho continue a estilhaçar-se. E um dia, podemos acordar para descobrir que já não há imagem nenhuma para refletir, apenas o vazio.