Assim que acordamos para este mundo e percecionamos, espantados, o ato de existir, verificamos que a par do nosso instinto de sobrevivência, somos orientados nessa existência, para regras que nos balizam o certo e o errado. Óbvio, que primeiro propósito é o de nos manterem ligados à vida, mas é também aqui que se inicia o esboço daquilo que os progenitores idealizaram para o Ser que agora começou a crescer.
Os nossos cuidadores no acompanhamento desse percurso, protegem esta criatura com um zelo extremo, num condicionamento imprescindível que medra no amor diligente, que em primeira instância visa manter a criança viva. Ao longo dos anos, nesta desmesurada solicitude de quem quer o melhor para o seu protegido, os educadores, balizados pela ideia de normalidade instituída nas suas comunidades, orientam os seus tutelados para a ambição de serem os melhores, tendo em conta as métricas desse círculo social onde estão inseridos. As intenções são as melhores, porque pretendem garantir o bem dessa criança, mas também e não menos importante, para a validação do educador.
Verificamos que estamos sempre acometidos a ideias de bom comportamento e de alinhamento com a norma e até os ditados populares nos empurram para os eixos, para uma linha de conduta que rejeita o erro, veja-se o apelo à prudência do, mais vale prevenir que remediar, ou então a sugestão dos passos ponderados do, a pressa é inimiga da perfeição, ou ainda o contido apelo à paciência do, quem espera sempre alcança.
Os educandos, nesta construção de princípios basilares para das suas vidas, vão-se por vezes desviando e deixam-se resvalar impelidos pelas vontades do corpo e o percurso imaculado imaginado pelos educadores, vai-se contaminando na descoberta dos prazerosos caminhos do demónio. Ao serem identificadas estas prevaricações, não se livram da reprimenda, do reparo sobre a sua conduta indigna e da acusação de que este comportamento muito provavelmente irá causar o homicídio involuntário do tutor, cujo coração não aguenta tamanha desfaçatez de desobediência em relação ao que foi estabelecido pelas pessoas de bem.
Curioso, que são essas falhas e esses desvios que nos trazem as boas histórias. O ter que contar alimenta-se do erro, das asneiras, da sujidade. Uma sociedade demasiado esterilizada retira-lhe o sabor, a adrenalina, retira-lhe a essência. O excesso de organização e previsibilidade enfada.
O grande desafio é mantermo-nos em equilíbrio, para que a cada revés ou tentação, o pé não falhe no penhasco ou a mão não escorregue da corda que nos vai tirar do abismo e nos permita, no dia a seguir, a redenção e que os caminhos, embora sinuosos, nos levem sempre a algum bom lugar.
Em termos artísticos, as desventuras foram largamente mais profícuas que a sorte e o triunfo. Dos corações amargurados saíram as mais belas obras literárias, os desobedientes criaram as mais disruptivas sonoridades musicais, os inadaptados imaginaram as mais loucas histórias do cinema, os que desrespeitaram as receitas descobriram os sabores mais surpreendentes da culinária.
Permitamos que as crianças se sujem, se rasguem, que desobedeçam. A desobediência agride e parece advir das forças do mal, mas será esta desobediência que sempre desafiará o medo e alimentará a liberdade.