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“Ifigénia em Áulis”: a tragédia que persiste na política portuguesa

Invasão do capitólio ou sintoma de doença na Democracia

Há imagens que persistem na memória política de uma civilização, mesmo quando já não sabemos nomeá-las. A de uma jovem conduzida ao altar, vestida como para um casamento, mas destinada à morte, é uma dessas imagens. Ifigénia, filha de Agamémnon, é sacrificada para que a frota grega possa navegar até à guerra. Não há retorno: ou o vento sopra, ou o império desmorona. E para que o vento sopre, um corpo inocente é exigido.

Portugal não está em guerra, mas vive, talvez, algo ainda mais denso: uma crise de linguagem, de símbolos, de confiança e de futuro. As eleições de 18 de maio foram mais do que uma troca de nomes. Foram uma travessia. Pela primeira vez em quase meio século de democracia, o centro político — esse eixo morno entre PS e PSD — foi abalado por um voto insurgente. O Chega, com uma linguagem de confronto e ressentimento, tornou-se a segunda força no Parlamento. E a vitória da Aliança Democrática, apesar de formal, revelou-se insuficiente para produzir governo com maioria. Nada de novo pode começar, mas também nada antigo pode continuar intacto.

É neste impasse que regressa a figura de Ifigénia. Porque quando os mecanismos habituais do poder falham, o instinto político procura outra legitimidade: aquela que se ergue através do sacrifício. O discurso público começa então a girar em torno da “estabilidade”, do “interesse nacional”, do “sentido de Estado” — expressões que soam como preces proferidas antes do corte da lâmina.

Quem será Ifigénia desta vez? Serão os eleitores que ousaram quebrar a lógica da alternância e que agora serão ignorados ou deslegitimados? Serão os princípios democráticos que se sacrificam em nome de uma governação “possível”? Será o próprio regime, reduzido a fórmulas ocidentais estafadas que já não correspondem à vitalidade do corpo político?

Agamémnon hesita. Primeiro recusa o sacrifício, depois submete-se. Receia o povo, teme o exército, consulta os oráculos. E cede. Mas cede não por malícia, nem por convicção. Cede porque o poder, em momentos de crise, prefere quase sempre a continuidade ao risco. É este o grande aviso da tragédia: o perigo não está na tirania aberta, mas na incapacidade do poder democrático de resistir ao medo do colapso.

Hoje, vemos esse medo difundir-se nas entrelinhas dos discursos políticos. Perante um Parlamento fragmentado, discute-se menos o conteúdo dos programas do que as formas possíveis de “acordo”, como se a substância pudesse ser sacrificada em nome do gesto. O Presidente da República aguarda com gravidade. Os líderes moderados ensaiam equilíbrios impossíveis. E a sociedade civil, exausta de repetições, assiste com uma mistura de ironia e desespero. Como se a tragédia estivesse em curso, mas já sem o brilho antigo do destino — apenas com a lógica baça da gestão.

E, no entanto, talvez o mais grave ainda esteja por vir: o sacrifício da linguagem. Porque quando o medo do “extremo” justifica tudo, até o silêncio moral, e quando o apelo ao consenso neutraliza todo o dissenso legítimo, aquilo que se sacrifica não é apenas um corpo político, mas a própria possibilidade de pensar.

Ifigénia, na versão de Eurípides, aceita o seu destino. Fá-lo com palavras de dignidade, invocando o bem comum. Mas Eurípides não nos oferece redenção: deixa-nos apenas com o eco da sua voz e o rasto da sua ausência. O sacrifício produz vento, sim. Mas que futuro se constrói com o sangue dos inocentes?

Portugal vive um momento semelhante: entre a coragem de refundar o pacto político e a tentação de recompor o velho edifício com novas vítimas. A esquerda resmunga nas suas margens, a direita modera a sua voz para não estremecer os salões, e o centro tenta sobreviver à sua própria implosão. No meio de tudo, a democracia parece hesitar: deve avançar com os ventos que sopram, mesmo que venham de lugares inquietantes? Ou deve recusar a travessia até que um novo princípio se anuncie?

Nenhum oráculo dará resposta. Apenas a lucidez, esse nome mais antigo da liberdade. Lucidez para reconhecer que estabilidade não é um valor absoluto. Que paz sem justiça é apenas pausa. Que governabilidade sem verdade é o prenúncio da servidão.

E sobretudo lucidez para escutar o que não se diz: que há sempre alguém prestes a ser levado ao altar — em nome da pátria, da Europa, do equilíbrio orçamental. Que esse alguém não é apenas uma metáfora. E que, às vezes, recusar o sacrifício é o gesto mais político que resta.

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